domingo, 4 de janeiro de 2009

EDUCAÇÃO POR APREÇO: O FUTURO SERÁ PÚBLICO OU PRIVADO?


Não tenho mais a ilusão de saber,
Não tenho mais a ilusão de poder ensinar
[...] Também não tenho bens, muito menos dinheiro,
Nem honra, nem glória no mundo.
Goethe – Fausto Zero

Uma educação com apreço é uma educação sem preço!
O que quer dizer tal afirmação?
Este é um exemplo típico de adjetivação do sentimento mantido em uma relação pessoal ou social em que se quer destacar, tipicamente, uma conotação ou significado anticapitalista. Aliás, este sentimento anti-burguês está contido na própria palavra apreço, pois, o a implica em negação, ou simplesmente no não. Logo, o entendimento da expressão poderia ser transformado em a-preço ou algo que não-tem-preço. Também podemos entender como Fausto: Também não tenho bens, muito menos dinheiro. É o drama bem conhecido dos milhões de professores mal-remunerados do país.
Isto ainda lembra a importância de se refletir sobre as palavras, seus usos e significados, e do método simples de decomposição das mesmas para em suas partes encontrar alguns segredos da etimologia.
Ao contrário da manifestação de vontade de consumir ou ter para condições para tal, inclusive demonstrando certa arrogância ao se dizer: “— coloque preço!”. A educação deveria ser/ter uma relação de apreço, muito mais do que de autoridade ou de expansão de conteúdos ou aplicação de métodos. Porém, o mercado e a mercantilização de praticamente todos os aspectos da vida social levam a tratar os sujeitos no exato sentido contrário, quando se diz, por exemplo, que os alunos são clientes. Uma e captura e de subordinação das subjetividades, aliás, há muito denunciado e já bastante conhecido:
Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas [...] Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar da inúmeras liberdades já reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos [...] Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência [...] A burguesia rasgou o véu de comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias (Marx, 1993, pp. 68-69).

Da mesma forma Goethe (1997 & 2001), logo na primeira página do seu Fausto já indicava a insatisfação, a depreciação do médico-professor:
FAUSTO Ah, estudei até a exaustão
[...] Tudo com a maior paciência.
Mas eis-me aqui, pobre ignorante
[...] Sou professor, doutor até,
Há dez anos eu fico atrás
Dos meus alunos sem parar.
Estudar, estudar, estudar!
Mas vi que não é possível saber
E isso dilacera o meu coração
[...] Não tenho mais a ilusão de saber,
Não tenho mais a ilusão de poder ensinar
[...] Também não tenho bens, muito menos dinheiro,
Nem honra, nem glória no mundo.
Nem mesmo um cão viveria desse jeito!
(Goethe, 2001, p. 15).

Todavia, não bastasse a relação de clientela (ou clientelismo, que seria ainda pior) temos que, em latim, cliente deriva de cliens e quer dizer basicamente vassalo. Logo, as relações de ensino-aprendizagem se imiscuem com a vassalagem.
No exemplo do ensino privado, restaria saber quem é o vassalo e quem é o Senhor! De todo modo, não pode haver aí uma educação sem preço, desmedida, sem medida monetária, sem conotação lucrativa. Quando, na verdade, a única conotação lucrativa deveria ser aquela natural de se agregar valores culturais, informações, (re)conhecimento.
Como se diz, a atenção, a perícia, a sensibilidade do professor/educador deveriam ser suficientes para perceber o progresso do conhecimento em seu alunado: “A perícia do professor e o progresso do aluno — e os deveres do aluno — começam todas as vezes que ocorre a comunicação de até mesmo um único elemento do conhecimento de um espírito ao outro” (Hutchens, 2007, p. 09 – da epígrafe).
Lévinas ensinava isto na tentativa de combater a instrumentalização do saber e da razão, pois ele próprio fora vítima (com toda sua família) do símbolo maior da racionalização como burocratização da vida cotidiana (Adorno, 1995): os campos de extermínio e de trabalhos forçados no regime nazista.
Nessas circunstâncias extremas ou na mercantilização da educação (da vida, porque não há social ou sociedade sem educação), o eu subsume-se na totalidade burocratizante e por isso o Mesmo ocupa o lugar do Outro. Quando a formalidade (racionalização) ou o valor de troca capturam as subjetividades, a vida como um todo deixa de ser interessante, repetindo-se, torna-se medíocre: “É bem possível que nenhuma individualidade ou especificidade, nenhum enigma ou transcendência pura seja capaz de sobreviver [...] Poderíamos dizer que a vida, então, perderia aquele sabor picante que faz com que valha a pena viver...” (Hutchens, 2007, p. 32).
Contrariamente a este sentido, entretanto, Lévinas procura ver caminhos e saídas que levem ao encontro do Outro(a). O mesmo mundo é capaz desse encontro e daí a idéia de que o Outro inunda a mesmice e dessa ruptura nasce uma ética da responsabilidade. Assim, pode-se dizer que o eu é o-ser-no-Outro. O eu é um ser (responsável) no Outro (eticamente). Em outros termos:
Lévinas denunciou os efeitos que a ânsia de perfeita inteligibilidade produz na interação entre as pessoas. Seus textos nunca cessam de mostrar um fascínio com as maneiras misteriosas pelas quais os seres humanos expressam sua singularidade no intercâmbio social (Hutchens, 2007, p. 33).

Portanto, é como se procura por um escape em que a própria educação não fosse apêndice do mundo do trabalho ou de um Know-How que levasse ao sucesso, à fortuna pessoal. Pode-se dizer que é uma educação de virtudes aquela que não procura e muito menos contentasse com pouco.
A inteligência que advém da educação está em não se contentar, com um saber de tipo ready made ou empacotado, comprado pronto e pronto para ser usado: “De fato, o conhecimento não pode ser considerado uma ferramenta ready made, que pode ser utilizada sem que sua natureza seja examinada” (Morin, 2000, p. 14).
A razão desse descontentamento com a educação que leva ou traz o pouco ou coisa nenhuma, decorre do simples fato de que o saber não é neutro, todo saber é poder, seja para Bacon, seja em Foucault: “Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à lucidez” (Morin, 2000, p. 14). Paulo Freire (2000) diria que é preciso ensinar (e aprender) o certo.
Este conhecimento desmesurado de mero valor de troca seria o ideal em que docentes e discentes fossem sujeitos complementares de um longo e cauteloso processo. Mas, como ver tal realidade em meio à mercantilização do saber, com salas de 100 alunos e apostilas para vencer?
Infelizmente, ao contrário do saber sem-preço, o Know-How adquirido na relação de ensino-aprendizagem monetarizada, em que os próprios atores são transformados em coisas, é claro que não permitirá o reconhecimento dos outros sujeitos do conhecimento, daí que também não haverá reconhecimento do Outro.
Isto nos leva a pensar no diferencial que o ensino público tem a oferecer, ou seja, o Princípio Republicano. Basicamente, implica em dizer que, se tratamos de instituições baseadas no consenso democrático de que se regem pela acuidade, pela soberania da coisa pública, então, o resultado almejado (pela lógica) seria a formação de um pensamento republicano de semelhante configuração. De certo modo, esta é a posição/opinião de Juliana Neuenschwander, doutora pela universidade pública, leciona e concluiu toda sua formação em instituições públicas:
A lógica do mercado é incompatível com a qualidade do ensino. Não há quem me convença que educação seja mercadoria de fácil consumo. Isto não significa que eu desconheça instituições privadas de excelência. Mas certamente prefiro o ensino público, por um princípio republicano, pois acredito na educação como tarefa do Estado, em seu compromisso na formação das futuras gerações. O mercado não tem esse compromisso: seu objetivo é o lucro. As duas coisas não combinam...(Júnior, s/d, p. 62).

Juliana Neuenschwander, atualmente, é diretora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De certa forma, também podemos dizer que este trabalho intelectual do professor-pesquisador seja parte do trabalho vivo, criativo, daquele profissional que se dedica à pesquisa, não estando refém das 40 aulas semanais ou da burocracia das coordenações ou escritórios e/ou consultórios, laboratórios particulares. Seguindo a dica de Antonio Negri (1999), este professor-pesquisador não está voltado ao Know-How, mas a um savoir faire-savoir vivre (viver intensamente o prazer do trabalho da criação), diante de uma atividade natural e essencial ao bom desempenho do seu trabalho e, portanto, igualmente específica e destinada à própria atividade laboral do educador: pesquisa/ensino/extensão (Martinez, 2003).

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